quinta-feira, 13 de março de 2014

Apetite pela destruição





Outro dia eu estava assistindo, como de costume, ao excelente Café Filosófico, que a TV Cultura exibe às 22h de todo domingo – e que tende a encerrar a angústia dominical de forma muito mais digna do que o fantásticos programas de variedade onde quem faz três gols canta.

Ontem o Flamengo não fez três gols. A torcida cantou, mas não só. Vaiou também.

Mas, voltando ao programa de palestras da Cultura, um psiquiatra falava do efeito da massa sobre o ethos. Dizia ele que uma pessoa que em hipótese alguma mataria outra pessoa, às vezes pode fazer isso de forma bárbara quando em grupo. Jovens que individualmente obedeceriam à maioria dos códigos morais que herdaram de suas famílias de repente se transformam em um grupo de sujeitos capazes de estuprar uma mulher ou matar um homossexual de porrada na noite da cidade. Estranho fenômeno.

No empate entre Flamengo e Bolívar, no Maracanã, a insatisfação começou a ser sentida ainda no primeiro tempo. Conheço o Maracanã há muito tempo, quase 25 anos, conheço muito bem a torcida do Flamengo. E, mesmo do sofá da minha sala, percebo quando o clima está tenso. E ontem estava, não sei por quê. Aos 30 da primeira etapa ouvi os primeiros agudos.

Aos trinta e tantos do segundo, quando a torcida já havia escancarado sua intenção de criticar o time com a última vogal em alto e bom som, olhei bem para o rosto do lateral esquerdo João Paulo, em close-up na TV. Ele tinha os olhos arregalados, a musculatura da face contraída. Falta na entrada da área, boa chance para o gol da virada. O repórter diz: “João Paulo tem treinado muito bem, acertado quase todas as faltas que bate no treino”. O cara bateu e isolou bisonhamente a bola. Respirou fundo, abaixou a cabeça e correu para recompor sua posição.

Antes que digam qualquer coisa, já vaiei e xinguei jogadores no. Ainda hoje xingo quando o sangue sobe a cabeça. Mas isso também acontece com pessoas muito próximas a mim e que eu amo muito. Xingar é paixão, faz parte e é perdoável. Mas vaiar, não vaio, nunca mais.  E hoje me sinto mal pelo Maurinho, pelo Cássio, pelo Jean, pelo Andrezinho, e por tantos outros. Pediria desculpas a eles, se pudesse fazer isso.

Comecei a acompanhar futebol de verdade no começo da década de 90 e nunca vi o Flamengo ganhar um título sequer jogando o fino da bola. Nunca. Vi esporádicas apresentações maravilhosas, sendo a mais recente delas os 4 a 0 no Botafogo, nas quartas da Copa do Brasil em 2013. Mas foi uma. Depois, jogou mal contra o Goiás, apesar de ter ganhado e, mesmo na final contra o Atlético, demorou 80 e tantos minutos para abrir o placar.

Foi assim também em 92, quando uma atuação memorável – 3 x 0 sobre o mesmo Botafogo, no jogo de ida da final – sacramentou um título que foi conquistado no suor por um time profundamente limitado (Charles Guerreiro e Piá faziam as laterais). Sempre foi assim: crise, bafo no quengo, futebol meio sofrível, de repente um dia alguém faz um gol incrível ou dá um pique de 70 metros por um desarme e a torcida vira uma chave, empurra o time e o Flamengo leva no vamo-que-vamo. Às vezes, sei lá por que cargas d’água, a torcida fica exigente, acha que é o Flamengo tem que ser a máquina do Zico de novo, ou cria a expectativa falsa de que o Muralha deveria ser o Andrade e assim por diante. Nesses caso, invariavelmente, o Flamengo afunda. Porque, evidentemente, a força que a torcida flamenguista tem para empurrar é quase a mesma que a força que ela emprega para ancorar o time no fundo. Física menos newtoniana do que quântica, mas o fato é que o bicho pega.  

No jogo da noite passada, talvez não houvesse jeito, mas tudo poderia ser diferente se os jogadores não sentissem, aos 30 do primeiro tempo, o bafo da insatisfação resfolegando na arquibancada. Foram 60 minutos jogando sob pressão intensa, o que resultou em falta de maturidade, na ânsia de resolver aquilo logo, o que causou as saídas desesperadas e deu os contra-ataques que o Bolívar aproveitou. O time é ruim? Claro que é. Todos são no futebol sul-americano atual, infelizmente. O time é muito pior que outros na Libertadores? Não, logo pode conquista-la. Mas só se jogar no limite de suas forças e tiver um Maracanã apoiando incondicionalmente ao lado. Só assim a coisa pode acontecer, como aconteceu nos grandes títulos que o clube levantou nas últimas duas décadas e meia.

O que isso tem a ver com o problema do comportamento em grupo que suspende as amarras éticas e morais e pode, no limite,  transformar vários sujeitos pacatos individualmente numa gangue de pusilânimes? Tudo.

Vaiemos o Blatter, a Dilma, o FHC, o Pato, que ganha zilhões para manter o saco de molho em água morna durante os jogos, vaiemos até o Carlos Eduardo, que ganha 550 mil mensais e sempre parece ter acabado de acordar. São pessoas calejadas pelo tamanho da responsabilidade que carregam e muito bem recompensadas por isso – o ônus e o bônus do poder. Vaiem o Real Madrid e o Bayern de Munique, que fizeram sua história recente em cima do aliciamento de jogadores de seus adversários, matando por asfixia os seus campeonatos locais. Vaiem o poderoso, o opressor.

Não vaiemos um jogador limitado de 25 anos de idade que joga o primeiro jogo internacional de sua carreira, e logo pelo Flamengo. Não arrasemos um time que conquistou um título nacional ganhando de todo o G4 do Brasileirão num ano em que pagamento de dívidas e crises de bastidores foram a pauta diária no clube. Não acreditemos no canto da sereia dos noticiários que fizeram alarde pelas contratações. Não nos iludamos: o time continua sendo ruim, mas tanto quanto os outros.  Não oprimir quem também é oprimido e usar a força do conjunto para a coragem e não para a covardia. Talvez seja mais produtivo.

É como tudo na vida. Com apoio, há alguma chance de um sujeito “limitado” se superar, realizar alguma coisa e ajudar a transformar a realidade ao seu redor. Sem apoio, mesmo um cara brilhante pode naufragar no oceano que é um auto-estima em baixa. É uma escolha: queremos destruir as coisas porque estamos muito putos e frustrados com o mundo e porque, estando em grupo, temos poder para isso? Ou preferimos trabalhar em colaboração para construir alguma coisa significante, ainda que isso aparentemente exija um sacrifício um pouco maior do próprio desejo e do ego?

A propósito, isso vale também para times de futebol.




Por Bruno Passeri.

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