quarta-feira, 31 de julho de 2013

G, GG, M ou P.

“No presente a mente, o corpo é diferente
E o passado é uma roupa que não nos serve mais.”

(Velha roupa colorida, Belchior)

Às vezes lembro com nostalgia de algumas roupas que ficaram pelo caminho. Uma regata cinza canelada que me fez companhia por quase uma dezena de anos e foi devorada pelas traças e pela ação aparentemente abrasiva da minha intensa produção de fluidos corporais. Um tênis Adidas preto de camurça dois números maior que fedia horrores e me carregou por todo o segundo grau até acabar na lixeira da minha história. Tem roupas feias que marcam e roupas lindas que passam batidas no fluxo da memória. Todas elas, porém, deixam de nos servir.

O Maracanã que conheci entre 1987 e 2010 foi um camisão GG meio cafona que servia que era uma beleza. Ele vestiu o investível, aqueceu o corpo etéreo que emanava de suas costuras de ferro e concreto pisadas pela massa rubro-negra. Por vinte e três anos, incontáveis vezes me infiltrei nesse corpo monumental que o estádio vestiu. Essa roupa não serve mais, não existe mais.

Existe outra roupa. Uma camisa G-quase-M num corte mais fit, de estampas mais cool, um outfit mais in, seguramente. O corpanzil que entrava naturalmente no camisão não cabe na camisa G. Precisa emagrecer, encolher a barriga, usar uma cinta modeladora. Nesses casos em que a loja não dispõe de outros números no estoque, só resta ao corpo desistir da compra ou se ajustar à roupa. Desistir da compra não está em jogo: Maracanã e Flamengo são simbióticos. Resta emagrecer. Mas há limites, porque quem vestiu GG por sessenta anos não pode subitamente passar ao P, naturalmente. Mas precisamos emagrecer.

E não só. Emagrecer apenas não basta. A bermuda e a sandália que iam bem com o camisão não combinam com a camisa G skinny. É preciso arrumar um tênis e uma calça, eventualmente um cinto, tudo novo. E é preciso aprender o básico da etiqueta, porque se o camisão aceitava uma manchinha de gordura, uma pizza sob os braços ou uma gota de cerveja ou coca-cola, a G-quase-M não aceita. Estraga o tecido.

“Você não sente, nem vê
Mas eu não posso deixar de dizer
Meu amigo
Que uma nova mudança, em breve,
Vai acontecer
E o que há algum tempo era jovem, novo
Hoje é antigo
E precisamos todos rejuvenescer.”

(Velha roupa colorida, Belchior)

O novo Maracanã é confortável, iluminado, organizado, cheiroso, bonito. O campo fica bem perto do público e a acústica continua sendo fantástica. Comprei ingresso pela internet através do site do programa Km de vantagens, da Rede Ipiranga, com 65% de desconto e entrega gratuita em casa. Por R$35, recebi o ingresso na quinta-feira, com três dias de antecedência, na caixa de correio do meu apartamento. Uma hora antes do jogo, havia apenas cinco minutos de fila bem-organizada para passar pela catraca. Cansei de enfrentar três horas de fila para comprar ingresso por R40 ou R$50, depois mais uma ou duas horas para entrar no estádio, às vezes tendo que correr de cavalo da polícia. Seria estúpido reclamar agora.

A boçalidade nunca fez parte do espetáculo, nunca acrescentou emoção alguma à atmosfera da partida, jamais trouxe qualquer mística ao estádio. Foi o amor que formou o tal corpo etéreo que o antigo camisão vestia, o amor cantado com fibra por tantos milhares de pulmões ao longo de tantos anos. Foram os detalhes aparentemente pequenos, as estampas menores, o botão escondido no colarinho, que tornavam a coisa única. Foram as impressões desses movimentos que cartografaram a mágica do Maraca. Dizem que, a partir de agosto deste ano, vão recuperar a antiga rede, no formato véu-de-noiva, para jogos entre clubes. Ainda cabem quase oitenta mil pessoas, mais perto do campo que outrora, fazendo um barulho incrível, as organizadas ainda levam bandeiras, bandeirões, balões, papel picado, mosaicos, bumbos, o gramado ainda é um tapete.

No começo, vai parecer estranho. Vai parecer uma ida à casa da madame de camisa nova. Aquela sensação da costura pinicando o ombro sem que você possa fazer um movimento brusco para coçar, temeroso que está de derrubar um bibelô.

“Será que eu tiro o sapato na entrada?”
“O biscoitinho do lado da xícara de porcelana é de comer ou de enfeitar?”
“Palavrão, rola?”
“Onde fumar? Onde peidar?”

Algumas indicações dos mapas antigos estão ali, outras desapareceram para sempre. É preciso recartografar o Maraca emocionalmente. É urgente. É possível.


E precisamos todos, todos emagrecer. Feliz e infelizmente.


Por Bruno Passeri.

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