segunda-feira, 1 de julho de 2013

Em progresso


Com dois de Fred e um de Neymar, Brasil massacra a Espanha no Maracanã, conquista o título da Copa das Confederações 2013 e faz pensar.

Do discurso, é preciso saber quem enuncia, o que enuncia e, sobretudo, de onde enuncia. Identificar essas posições é vital para entrever as relações de poder que o compõem.

No futebol, a paixão clubística é de uma natureza totalmente diversa daquela que se nutre pelo selecionado nacional. A paixão pelo clube é deliberada porque cada um decide para que time torce, embora essa escolha não seja desembaraçada de mediações. Na minha família, por exemplo, uma escolha por não ser Flamengo representaria uma tomada de posição radical contra a tradição. "Eu sou Flamengo", portanto, é o discurso que eu enuncio a partir de minha posição social e formação familiar. Há diversas relações, inclusive de poder, implícitas nesse discurso. Mas esse é assunto para outra prosa.

Por ora, nos contentemos em apontar a diferença de natureza entre esta paixão pelo clube e aquela pela seleção nacional de futebol. A nação não é uma escolha. O homem pode estar mais ou menos afastado de suas origens, mas resta uma bandeira, um hino, uma História e, acima de tudo, uma língua - logo, uma estruturação cognitiva, uma forma particular e nomear e entender o mundo - compartilhada com outros tantos seres humanos, elementos que estampam sobre estes homens uma espécie de marca indelével. Discutir a formação histórica das nações e a questão da identidade nacional também é assunto para outras prosas.

No Brasil, o futebol é uma dimensão definitiva da vida pública. Entre outras coisas, somos o que jogamos. E a função histórica da Seleção Brasileira não pode ser desprezada. Não sei como a coisa se dá em outras praças, não conheço a fundo outros países para dizer e não pretendo estabelecer, por isso mesmo, qualquer tipo de comparação. Basta saber que é assim no Brasil.

De onde enuncio estas palavras agora, um estado de embriaguez pelo acontecido ontem, 30 de junho de 2013, no Maracanã, o raciocínio parece fazer sentido. 

Os cinco títulos mundiais da Seleção, referendação suprema de sua vocação futebolística, pontuaram momentos históricos cruciais da história moderna do país. O bi-campeonato 58-62, quando se instituiu um novo paradigma de jogo, pautado pela possibilidade do drible e do improviso, o avassalador triunfo de 70, em que se acrescentou à maturação daquele novo paradigma o advento do alto rendimento físico, o chorado tetracampeonato de 94, quando houve Romário, e o alegre penta em 2002, todos esses títulos encontraram ressonância em movimentos que se davam no âmago da sociedade brasileira.

Aqui, é preciso fazer uma digressão. 

Pensemos que um time de futebol é composto, basicamente, por jovens. Nos parâmetros do esporte de alto rendimento, o declínio fisico de um atleta de futebol se dá, em geral, a partir dos 30 anos de idade e mais acentuadamente a partir dos 35. Demograficamente pensando, porém, um sujeito de 30 anos é um jovem. A Seleção Brasileira que ofereceu o baile da noite passada tinha como jogador mais velho o goleiro Júlio César, com 33 anos de idade. A média de idade da equipe é de aproximadamente 26 anos. Jovens, portanto. Em 1958 e 1962, essas médias eram de mais ou menos 25 e 27 anos, respectivamente. Em 1970, a média era de pouco mais de 24 anos, enquanto em 94 e 2002, curiosamente, as médias foram idênticas: 26,2 anos de idade. Ou seja, no sentido do termo apropriado pela demografia, e não pela ciência esportiva, foram equipes formadas por jovens.

Como são jovens que compõem a maioria dos imensos cordões que ocupam as ruas e os espaços públicos há pelo menos três semanas no país. Toda seleção nacional, dessa forma, é uma pequeníssima amostra da juventude de um país. Salvo nosso grande goleiro atual, todos os demais jogadores do time que arrebentou a corda da viola na final da Copa das Confederações 2013 nasceram nas décadas de 80 e 90. Nesse sentido, é possível afirmar que jogadores da Seleção atual e jovens que atiçam o panorama político nacional fazem parte de um mesmo conjunto, foram criados no mesmo momento, sob condições históricas similares e sob o mesmo zeitgeist, ou espírito da época: são da mesma geração.

Como Pelé, Garrincha, Didi, Zagallo e seus companheiros nos dois primeiros títulos mundiais do Brasil, em 1958 e 1962, foram da mesma geração daqueles que cantavam, à base de frases de jazz e samba, goles de uísque e cachaça, roncos de motor automotivo e britadeiras e betoneiras, à sombra das curvas de arquitetos modernistas, um Brasil que vislumbrava uma candidatura ao desenvolvimento e ao progresso prometido lá pela metade do século XX. 

Como um amadurecido Pelé, Tostão, Jair, Rivelino, Gérson e outros foram da mesma geração que se entricheirava sob os porões, ou atrás das armas, ou dos palanques, ou na subserviência, ou atrás de seus salários, ou de Deus, ou da família, ou da tradição, ou da propriedade ou de um hologramático milagre econômico, gemendo, entre altos e baixos, um "Pra frente, Brasil" que se fundia com a harmonia do escrete amarelo. 

Como estavam condenados, pelo mesmo tribunal histórico, os filhos dos porões a perderem as lindas batalhas que insinuaram nas ruas e no gramado no início da década de 80. 

Como respiraram depois de três décadas de asfixia econômica, poítica, ideológica, social e de títulos mundiais no futebol de seleções, os nascidos nos 60 (salvo Gilmar, nascido em 59, e Cafu, que veio ao mundo em 70), através de um trabalho pragmático realizado dentro dos campos e nos escritórios e nas salas de estar de cada família. Era preciso ser assim, dizia o senso comum sobre a vida e sobre a Seleção: a dureza dos tempos recentemente passados nos ensinara dessa forma e o destino daquela geração estava marcado. Havia Romário e a taça veio, dura como vieram as notícias das décadas anteriores. Quebrando o protocolo FIFA, Dunga ergueu-a proferindo: "É nossa, caralho!". 

Depois, na torrente do discurso do progresso e da modernidade foram levados patrimônios nacionais, vendidos tesouros inestimáveis, a bandeira puiu, mercantilizaram-se Brasil e brasileiros nascidos na década de 70, cegados pela luz do ouro e, convulsionadas ao ritmo marcial de La Marsellaise, hino nacional francês, seleção e sociedade assistiram ao espetáculo de Zidane.

Em 2002, havia algo no ar. Qualquer coisa no espírito daquela época anunciava novos ventos. Um pouco da enxurrada de alguns anos antes estancara, poucas partículas se cristalizaram no fluxo da globalização, ou sei lá o quê. Tínhamos, então, alguma coisa a oferecer ao mundo, além de nossa própria resiliência a toda lama histórica? Do outro lado do mundo, chegavam imagens e sons de um grupo de jovens nascidos nas décadas de 70-80, capitaneados pelo líder brabo e carismático que era o Felipão, pagodeando entre japoneses e coreanos. Cafu ergueu a taça com um sorriso que, por si só, é um discurso complexo, e disse: "Regina, eu te amo". Poucos meses depois, com 52.793.364 votos, a maior marca da história da República, Luís Inácio da Silva, o Lula, pôs a faixa no peito.

Em 2006, coincidentemente de volta ao território europeu, metrópole e totem de nossa construção (inclusive no futebol, claro), fomos arrogantes. Estávamos ricos, pela primeira vez participávamos do mundo do consumo para valer. Comprávamos muito, vendíamos muito, o país estava em ebulição, subíamos a cada dia no ranking das maiores economias mundiais, tínhamos os maiores do mundo portando cordões de ouro em terras espanholas de fazer inveja aos portados pelos astros do basquete em terras ianques. "Iate em Botafogo, apartamento em Ipanema, uma vida de bacana, se eu entro assim pro esquema". Ou: "Desempregado, falido, andava pela rua largado e fodido. Achou na rua uma carteira recheada de dólar. Acabou-se a miséria, foi-se o tempo da esmola". Assim cantavam Marcelo D2 e Chorão, respectivamente, em "À procura da batida perfeita" e "Rubão", no começo do século XXI. Éramos todos assim, todos um Rubão à sua própria maneira. E nossos rubões, na Alemanha, pagaram caro para ver Zidane, de novo.

A ressaca estava braba em 2010. Tínhamos um repertório de brados na gaveta, tínhamos um capitão do "É nossa, caralho!" no comando da equipe, tínhamos uma ex-guerrilheira disputando o poder. Estávamos buscando as referências, revisitando o passado em busca de pistas sobre o que fazer dali em diante. Mas o time não encaixava, as referências não davam liga e, cheios de energia mas sem o ímpeto natural, demos murros nas pontas das facas e voltamos da África do Sul mais cedo do que gostaríamos, depois de fazer o máximo que era possível com o que estava disponível.

Agora temos milhões nas ruas e uma taça das Confederações na estante da CBF. Temos um time que deu liga, atropelou a quem de direito e reafirmou a hierarquia óbvia e quase esquecida da história do futebol. Temos uma torcida que reaprende a torcer em casa por uma seleção que volta para casa depois de muito tempo. Reaprende a ponto de formar, com quase oitenta mil corpos, um desfibrilador gigante capaz de reanimar o sagrado Maracanã, onde talvez nem a força da grana destrua as coisas belas e nem o peso do concreto novo soterre os velhos espíritos que o fazem ser a máquina potente que sempre foi. Nós também voltamos para casa depois de muito tempo. Houve uma diáspora. Estivemos na luta e na farra, estivemos fisica ou espiritualmente fora por um tempo. Aos poucos, estamos voltando. É só o começo. O processo é moroso. Há defasagem entre as pressões das ruas e os movimentos institucionais que atendem a essas pressões. Mas eles acontecem. 

A Seleção Brasileira não representa o povo e o povo não representa a Seleção. A Seleção não empurra o povo e nem o povo empurra a Seleção. Os dois se imbricam profunda e mutuamente num processo complexo e contínuo. São os mesmos jovens que compõem os dois, afinal. 

David Luiz nasceu em Diadema, São Paulo, em 1987. É zagueiro, atua no Chelsea, da Inglaterra. Com 26 anos, está no centro da média de idade da Seleção atual. É um jovem brasileiro que andou fora por um tempo e voltou a jogar em casa. Ao final da partida, na zona mista onde, segundo o padrão FIFA, os jogadores devem dar seus depoimentos aos jornalistas credenciados, seu discurso não foi polêmico, não foi vingativo, não foi de desabafo, não foi ideológico. Foi determinado: 

"(...) desde o começo, a gente entendeu o que tinha na mão, e entendeu que poderia demonstrar isso, mas somente unidos. A gente se uniu, tem um grupo muito consciente, a gente ainda não ganhou nada. Ganhou hoje um título importante que é especial, mas ainda estamos numa caminhada muito grande."

Marilena Chauí nasceu em Pindorama, São Paulo, em 1941. Tem 71 anos, é professora de filosofia da Universidade de São Paulo e um dos maiores nomes do estudo da história da filosofia no país. No eclodir da mobilização pelas ruas das cidades brasileiras, declarou:

“Não é momento histórico, é um instante politicamente importantíssimo, no qual a sociedade vem às ruas e manifesta sua vontade e sua opinião. Mas a ação política é efêmera, não tem força organizativa do ponto de vista social e política, não tem uma força de permanência, caráter dos movimentos sociais organizados, de presença organizada em todos os setores da vida democrática.”

Há algo em comum entre os dois discursos. Nada está ganho e, apesar dos efeitos expressivos do sacode no bicho-papão - em campo e nas ruas - muito trabalho ainda há pela frente. Muita determinação é necessária ainda para construir um momento histórico que garanta o hexacampeonato mundial. Ou será o contrário?



Por Bruno Passeri.


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