quinta-feira, 6 de junho de 2013

Uma carta entre dois velhos amigos



Maracanã, meu velho, amigo,

Tenho acompanhado o noticiário desde o início e, portanto, não faz muito sentido perguntar como tem passado. Lamentei desde o primeiro momento, mas não poderia imaginar que as coisas chegariam a esse ponto. Eu bem sei o quanto me toma por arrogante, mas dessa vez mesmo você deve me dar razão. Se não sou ainda centenário como meu nome, estou chegando lá e então me sinto à vontade para fazer agora o papel do senhor de idade que se põe a aconselhar os mais jovens.

Outro dia vi uma foto sua e não pude reconhecê-lo. O que fizeram de ti? Muitos dos nossos já passaram antes por processos de “modernização” (com o perdão da palavra), mas nenhum parece ter sofrido tanto. Não se tratou apenas de um rejuvenescimento, não foi só a ofensa de te colocarem essas desnecessárias cadeiras coloridas, foi bem mais do que um simples encolhimento. Não se contentaram em mudar sua aparência externa; mexeram por dentro, no âmago, no que te faz distinto de todos os demais – e te tornaram igual a outros tantos. O que fizeram contigo foi o que de pior pode acontecer a um estádio: tomaram sua alma.

Alma, meu caro amigo, é o que distingue poucos de nós em meio aos milhares de estádios que há por aí. E temos (ou tínhamos), você e eu, muito mais em comum além da alma. Foi aqui, em 1930, que, recém-nascido, vi a Celeste Olímpica vencer a primeira Copa do Mundo. E foi aí, 20 anos e uma Guerra Mundial depois e com você também recém-nascido, que El Negro Jefe, Schiaffino e Ghiggia foram buscar o outro Mundial de que se orgulha o Uruguay. Você pode até não gostar, pois te carimbaram esse tal Maracanazo para todo o sempre, mas isso nos tornava um tanto mais próximos. Tanto quanto o fato de sermos os palcos sagrados do futebol nas Américas – quem haverá de nos desmentir?

A verdade, velho Maraca (se me permite a intimidade), é que estou para te escrever há tempos e venho adiando a tarefa, mas não deu para resistir aos acontecimentos mais recentes.

Não sei se você sabe, mas estou em uma semana das mais agitadas, com jogos decisivos do campeonato nacional e um duelo do nosso selecionado contra a França. Nesses jogos todos, a rotina é a mesma de sempre: o povo se fez presente, cada torcedor fica (em pé ou sentado) no lugar que bem entende, bandeiras se agitam, faixas são penduradas, camisas tradicionais sobem para o gramado, ouve-se o alento das hinchadas de lado a lado, ofensas são proferidas sem muito critério, papéis picados se fazem atirar, vende-se café, choripans, churros e hamburguesas, Montevideo vive o futebol que nós dois tão bem conhecemos.

Gente de todo tipo dá as caras por aqui. Minhas velhas, históricas e desgastadas tribunas recebem o povo semana após semana.

POVO. Você ainda se lembra do significado dessa palavra?

Novamente fazendo uso da prerrogativa de um idoso de 83 anos que aconselha um ex-senhor de 63, te digo que é algo bem distinto dessa gente que te tomou de assalto de uns anos para cá. A verdade, meu bom amigo, é que te dilaceraram por completo apenas para que burocratas falassem em seu nome e pudessem cobrar os impropérios de agora (vi e me assustei com os preços dos ingressos). Não contentes com a extorsão praticada, ainda querem domesticar o público, submetendo quem te visita a absurdas cadeirinhas numeradas e querendo impor o jeito como se torce. Aliás, me recuso a chamar de “torcer” o que se tem feito por aí nesses tempos tão sombrios.

Por aqui, eu admito, as velhas arquibancadas que viram a primeira Copa andam precisando de reparos, as cicatrizes já se fazem notar além do aceitável e há evidentes sinais de cansaço. Não vou negar que alguns cuidados seriam bem-vindos, mas não pode ser nada como o que fizeram contigo. Porque, em que pesem todos os problemas que vêm com o tempo, ainda se vive a história do futebol nessa zona central da velha Montevideo. E minhas tribunas ainda se chamam Olimpica, Amsterdam, Colombes e Américas, bem ao contrário das suas, que agora atendem por letras e números que nada dizem.

O povo ainda pode, semana após semana, olhar para esta velha cancha e relembrar os grandes esquadrões que por aqui passaram. E minha estrutura não é feita apenas de cimento – que os oportunistas e deslumbrados que te mataram certamente chamariam de ultrapassado –, mas é composta de uma Copa do Mundo, centenas de títulos, incontáveis clássicos e muitas, inesquecíveis e dramáticas noites de Libertadores. Por aqui passaram – e continuarão passando – todos os grandes clubes do continente.

Meu conterrâneo Eduardo Galeano, que tanto te respeita, escreveu certa vez que eu “suspirava de nostalgia pelas glórias do futebol uruguayo” e que você “continuava chorando pela derrota de 1950”. Pois a primeira parte continua verdadeira – o saudosismo me precede –, mas te fizeram esquecer à força as memórias (boas e ruins) das últimas seis décadas. Não apenas te tomaram essas lembranças todas, mas afastaram de ti a gente que o fazia ser o mundialmente famoso Maracanã.

(Outro dia, velho amigo, escutei que se cogita uma candidatura do Uruguay para sede da Copa de 2030. Pois eu desejo que isso nunca aconteça. Não quero ter o mesmo destino que impuseram a ti.)

E sim, fiquei sabendo do vexame que você passou com o quase cancelamento do jogo entre o país que inventou o futebol e o que se diz “o país do futebol”. Sabe, meu velho, você vai me perdoar, mas isso até que viria a calhar. Porque um vendeu a alma faz tempo, afastando o povo das canchas, e o outro tem seguido pelo mesmo caminho, mas de um jeito muito mais vergonhoso. E eu sinceramente prefiro guardar de ti a imagem que adorna o Museo del Fútbol, aqui no meu interior: um Maracanã grandioso, repleto, popular, liberal ao extremo, sem imposições, malandramente carioca e com o espírito aberto para receber o povo…

O futebol, você vai me perdoar uma vez mais, continua a viver mesmo aqui no Uruguay – e, que eles não saibam disso, lá do outro lado do Río de La Plata…

Saludos,

Centenario de Montevideo


Por Beto Passeri

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