quinta-feira, 23 de agosto de 2012

"Fabulário Geral do Delírio Cotidiano"



Às 5 a.m ainda não sabem se o Sol honrará seu compromisso com o dia, mas são impelidos a escolher o traje - calor ou frio? -, bêbados de sono. E aí se metem no banho, dormem duas, três vezes, perdem a hora e o tempo para comer. Lembram da quentinha, forçam ela na mochila entre um par de sapatos velhos e um casaco bolorento, mas eles brigam entre si, vazam, lhes fodem a vida; mochilas suja, barrigas vazia, e as cabeças pendendo pra fora do ônibus-galinheiro que sacode na esperança de despertar alguém para a vida. Mas estão todos quase mortos, são só almas, sem corpo - pele, músculos, ossos -, sem um pingo de felicidade. Até que encontram as esteiras rolantes das estações de metrô, e se dão o direito de pararem para sofrer enquanto o relógio aponta 15 minutos para o juízo final.

Poucas coisas representam melhor a melancolia da rotina do que um passeio de manhã bem cedo pelas estações de metrô e trem, e pelos pontos de ônibus, observando cada rosto inchado, cada traço triste e mal dormido, cada olhar à beira da desistência. Adiar prazeres, ou melhor, tê-los sempre ao alcance num futuro próximo é quase uma lei de sobrevivência numa sociedade em que tudo se consome e se esvazia antes que o tempo possa agir. Projetar no futuro a felicidade cria um combustível quase infalível para enfrentar o hoje insípido. A cerveja no fim do expediente, o salário no início do mês, as férias em algum momento do ano...

É desse tipo de esperança peculiar e injulgável que tem se alimentado o torcedor do Flamengo nas últimas semanas. Desde que a presidente Patrícia Amorim assumiu o Rubro-Negro (e aqui cabe ressaltar que não estou personificando e nem simplificando a culpa), em 2009, logo após a conquista do Campeonato Brasileiro, foram dois anos e oito meses de fracasso em quase todas as instâncias: páginas policiais, dois ídolos na fogueira - Zico e Andrade saíram pela porta dos fundos -, diversas eliminações vexaminosas e um projeto a longo prazo que traiu a expectativa de ver um novo grande ídolo. Ronaldinho se foi, levou o futebol que nunca jogou no Rio de Janeiro para Minas Gerais, e deixou na Gávea um título Carioca e uma dívida de 40 milhões de reais a ser paga.

O paternalismo de Joel Santana não foi suficiente para resgatar um grupo em frangalhos, e a opção por Dorival Júnior soou como derradeiro suspiro. O futebol melhorou, sim, mas o progresso mais significativo foi extra-campo. Na confiança do grupo em si mesmo, claro, e da torcida no próprio time. Voltar a torcer, a pertencer. Enxergar nos garotos precoces da base jogados aos leões uma maturidade inesperada. Mas ainda falta muito. E todos sabem o que é esse muito, só não querem admitir.

Paira um medo coletivo de se decepcionar de maneira cruel, quase como uma adolescente apaixonada receosa do pedido de namoro. O pedido foi feito por Adriano: "Me deem mais uma chance, eu sei que será a minha última". As consequências todos já conhecem, as probabilidades também. Mas e daí? Não vivemos de quimeras? Ou, como diria Charles Bukowski, no "Fabulário Geral do Delírio Cotidiano"? Não dá para levantar da cama sem pensar na viagem que sequer tem destino decidido, assim como não dá para suportar o Flamengo de hoje sem projetar o Adriano que já não existe mais.



Por Beto Passeri.

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