sexta-feira, 30 de março de 2012

Armazém de Secos e Molhados


A morte – considerada doloroso fim  para os desavisados transeuntes que inundam as ruas e as filas de banco desses nossos dias   –  continua a ser paradigma mesmo após todas as tecnologias criadas pela dedicação, suor e dor de gerações passadas. Dos mais intrigantes pensamentos que nos atravessam no recostar do confortável travesseiro na iminência do sono, é exatamente o mórbido que causa calafrios. Contudo, há figuras capazes de transpor até a mais insolúvel das questões da existência: personagens que, por meio do papel que exerceram nesse grande espetáculo tragicômico do dia-a-dia, fincam o totem da eternidade e tornam a existir no momento em que é evocada a prática pela qual o gênio alcançou a sublimação.
Não cabe indagar a posição de Millôr Fernandes na escala dos pensadores brasileiros (deixem os rankings e as comparações para as postagens mais objetivas e divertidas sobre o futebol). Fato é que, sem dúvidas, trata-se de um dos maiores do Século XX. No Pasquim, no Teatro, nos livros, Millôr foi magnífico. Humorista que suscitava gargalhadas dos expectadores, crítico literário de ímpar destreza, homem de opiniões impactantes, foi um grande formador de opinião. Como tantos. Não foi por tudo isso que ele alcançou a perenidade.  Muitos são bons, excelentes no que fazem; singulares são os que  penetram conceitos, alcançam simbiose em uma prática e são evocados toda vez que tal é exercida.
'Jornalismo é oposição, o resto é armazém de secos e molhados' sentenciou.  Na verdade urrou, não se sabe onde nem quando. O que se sabe é que, com uma simples linha, traduziu todo o espírito de uma profisssão e que toda vez que um Chapa Branca for realizar um elogio pecaminoso, toda vez que um repórter desavisado recorrer a visões hegemônicas por ser mais confortável, toda vez que um escritor periódico (dura realidade...) se vender por algum preço, seja ele qual for, a frase volta, ecoa, lateja, tortura. Efêmera Via Crucis, de segundo ou semana,  que dói e corrói quem um dia pensou em passar a verdade.
O pensamento também traz o humor ácido e fresco de Millôr, que é capaz de formular imagens fantásticas e autoexplicativas. O que mais seria um jornalista acomodado com a situação do que um gordo e velho vendedor de bazar? Fantástico. Com tão poucos caracteres, o Filósofo da Ironia desenhou um quadro aterrorizante para os devedores. E bem assim, simples e refinado, passou mensagem a todos que um dia pensarem em informar fatos e versões, vozes e silêncios. Devido a essa simplicidade, a repercussão de sua morte não tenha sido tão midiática.
Eu sei, pode ser uma idéia minha. Mas o contraponto se faz necessário devido a proximidade no calendário: Chico Anysio teve muito mais espaço após seu derradeiro momento do que Millôr Fernandes. Evitando a comparação novamente, o estrondo entorno do fim da vida do humorista global foi muito mais audível do que o assovio que permeou os instantes que sucederam o ponto final do grande pensador. Talvez pelo medo dos que veêm na frase um profético atentado contra sua vida profissional. Talvez porque realmente o homem tenha se transformado em eterno.

Por isso, correndo na direção contrária, salvo a persistência do mito. Sem os soluços dos mais próximos e lugar comum da maioria, não digo o velho 'Descanse em Paz'. Peço, incarecidamente: Millôr, não descanse.




Por Helcio Herbert Neto.

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