sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Série Marginalizados: Fruto dos Rios de Euforia

Para ler ao som de: O Rappa - Papo de Surdo e Mudo

Sempre que cai a alvorada no bairro cumprem-se os dogmas do velho ritual pagão. Quando o Sol ousa repousar na encosta verde da Floresta da Tijuca, os bares recebem a gente da área, que, antes do último feixe luminoso, já inunda as ruas com bancos, cadeiras e alegrias. Dispostos a superar os problemas e a celebrar mais um dia que se vai, o povo encontra abrigo entre serras e rios, nessa terra onde paira o cheiro da madrugada.

Aldeia Campista. Interseção entre Vila Isabel, a Tijuca e o Andaraí, a região recebeu de braços abertos a família Dos Santos na chegada à Capital Federal. Vindos do interior do Maranhão, Dona Rosa e sua prole seguiram o fluxo dos nordestinos brasileiros. A fuga da seca, da fome e da sede traz os filhos do chão rachado ao Rio de Janeiro. Entretanto, um dos filhos dessa sofrida e batalhadora mulher teria o dom de brilhar nos gramados e espantar a dura miséria semi-árida nacional.

Era fim da década de Vinte e a Zona Norte não conseguia imaginar o fim de seu sofrimento. O filho de Dona Rosa via isso diariamente no trajeto que fazia até Bangu, onde jogava bola. O negro alto e forte não se destacava somente por seu porte. Uma habilidade incomum chamava atenção de quem assistia qualquer 5 minutos de seu futebol. Por mérito, chegou ao primeiro time do Bangu. Era adorado por seus companheiros de time, já que distribuía entre seus colegas os mais fáceis gols da história do Futebol Amador. Rapidamente, seu nome virou sinônimo de celebração.

Celebração no esporte, quando matava a bola no peito e a torcida vibrava com a iminência de uma bela jogada. Celebração na vida, quando erguia o copo e comemorava cada gol na noite carioca. Famoso freqüentador das abafadas e atraentes madrugadas do Rio, o nome de Fausto já era notável; tinha destaque nas manchetes dos periódicos esportivos e emanava das aguardentes nas esquinas do Subúrbio.

Com as longas e boêmias noites, Bangu ficava cada vez mais distante. A longa viagem começava a ser o álibi de atrasos e faltas. Largar a madrugada e dedicar-se plenamente a vida de atleta? Nunca. Buscar um clube que fosse mais próximo das redondezas do Rio Maracanã parecia uma alternativa mais plausível.

A camisa negra e a Cruz de Malta receberiam o meia que abandonara o clube alvi-rubro. Muito mais próximo da casa de Fausto, o Vasco seria sua nova residência futebolística. Sob a égide do nome do desbravador português, vieram títulos e a consagração popular. O filho do Maranhão caiu nos braços da torcida. Deleitou-se com a fama. Banhado pela euforia dos cruzmaltinos e pelo doce sabor da cevada, Fausto chegou à Seleção Brasileira.

Pouco tempo depois, chegava o primeiro Mundial de Futebol. O planeta suspirava só de pensar em ver todos os grandes jogadores da Terra se confrontando para decidir quem seria o Maior. Tendo como plano de fundo o misterioso e desconhecido universo das Copas do Mundo, a seleção brasileira desembarcava no Uruguai. E coube a Fausto ser o destaque do Brasil na Primeira Copa.

Um time desorganizado e inconseqüente. Uma equipe de homens que sentiram a pressão e que tremeu perante os adversários. Nada disso foi capaz de ofuscar as grandes apresentações de Fausto dos Santos. As atuações individuais do craque vascaíno fizeram com que a torcida e a crítica passassem a chamá-lo de ‘Maravilha Negra’. Apesar das grandes exibições do Meia, o time brasileiro sucumbiu frente aos gélidos iugoslavos. Somente o maravilhoso negro maranhense foi absolvido pelo povo.

Ao voltar para os bares da Aldeia Campista, um sentimento estranho tomou a vida do filho de Dona Rosa. Ser o único respeitado em toda uma lista de selecionados causou um sentimento de Solidão. Para celebrar o clamor popular por seu nome, entornava mais um copo. Para esquecer a eliminação e o desempenho pífio do seu time, tragava mais uma dose. O ritmo de Fausto se tornava cada vez mais alucinante.

Alucinante e estafante. Uma gripe interminável assustava Dona Rosa. Onde já se viu vida assim? Atleta deve esbanjar saúde, ter hábitos disciplinados. Mas Fausto era exatamente o avesso dessa imagem. Mais magro, pálido e festeiro, a Maravilha Negra andava abatida. Fugia de médicos com a mesma eficiência com que escapava dos marcadores. Ouvir um homem de branco era ter a confirmação de uma verdade que era muito menos dolorosa sob a forma de suposição.

As tosses e febres tiraram-no do Mundial de 34. Como que prevendo uma despedida derradeira, foi à Europa para varrer a miséria da vida de sua família. Chegou ao Barcelona com status de astro. E, realmente, emanou luz. Levou o time Azul-Grená a um Campeonato Catalão e apresentou às espanholas o valor da gente da terra do samba.

Encontrou muito nas noites européias. Mulheres, bebidas, glamour. Não obstante, a saudade foi mais forte do que todas as benesses da vida de jogador profissional. Sua família, seu bairro, seus amores e amigos. Tudo estava no Brasil. Após uma rápida passagem no futebol e na noite da Suíça, voltou aos incandescentes paralelepípedos do Norte da Guanabara.

No retorno, o habilidoso meio-campo encontrou portas fechadas no Vasco da Gama. Sem oportunidades no clube em que mais brilhou, teve de encontrar o afago no time Rubro-Negro da Zona Sul. Contudo, ele já não era o mesmo. Incapaz de jogar uma partida completa, os torcedores desconfiavam da abnegação de Fausto. Entretanto, a culpa não era de sua dedicação. A boa e velha gripe se intensificou, privando-lhe até mesmo das suas confidentes madrugadas. As cinzas das horas marcavam o futuro da Maravilha Negra.

Tuberculose. Não adiantou driblar por tanto tempo os médicos, o destino é impiedoso. Como golpe final e irremediável, foi levado para um manicômio no interior do Brasil. Terra de ares limpos, puros e sóbrios. Acompanhado por sua mulher, passou seus últimos dias distante do barulho de seu povo e do movimento de seu ambiente predileto: a Aldeia Campista. Em meio a loucos e enfermos, Fausto disse adeus ao futebol e à festa que pôs em prática nessa vida.

A Aldeia Campista desapareceu. Foi engolida pela expansão comercial da Tijuca. Ninguém mais conhece a região pelo antigo nome. Todavia, é só o Astro-Rei demonstrar o cansaço por mais um dia de luz que o povo das redondezas das terras de Fausto repete a centenária procissão. Aquelas esquinas, que recebem jovens e velhos, ricos e pobres, contam a história do homem que espantou o mundo e que um dia foi chamado de Maravilha Negra. Todos que por ali bebem e celebram a oportunidade de estar respirando, altivos, celebram também, inconscientemente, a vida de Fausto; o símbolo do espírito daquele lugar.


Por Helcio Herbert Neto.

Um comentário:

  1. Lindo! Texto perfeito na emoção e um presente para quem além de vascaína,morre de saudades das esquinas de sua terra.
    Obrigada.
    Abraços,Anna Kaum.

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