quinta-feira, 27 de outubro de 2011

A Verdade com palavras fáceis


Morreu hoje pela manhã talvez o último resquício do período clássico do futebol brasileiro. Luiz Mendes, o Comentarista da Palavra Fácil e da mais preciosa memória do esporte, foi vítima, aos 87 anos, de um câncer que já o abatia há tempos. Esse célebre radialista deixa saudades e lembranças preciosas para aqueles que tiveram a oportunidade de conviver com ele. Por uma efêmera manhã, este que vos fala teve a felicidade de estar com esse grande personagem. E, da boca de Luís Mendes, tive a chance única de obter a comprovação de uma verdade preciosa, que esvai-se ao longo do tempo.

Era uma manhã cinza de um sábado. Após uma longa noite fora de casa, em meio à noite da Zona Sul carioca, chego em casa já ao amanhecer. Poucas horas depois, um compromisso bate a porte. Havia me inscrito em um Fórum Jornalístico, como pude me esquecer? Ainda que relutante a abandonar o amável e aconchegante travesseiro, tomo a decisão de me levantar e ir, mesmo que atrasado, para o encontro. O evento contava com diversas figuras imponentes do jornalismo esportivo, dentre eles, Luiz Mendes. É, aquele velhinho, que aparecia de vez em quando na televisão.

Ao chegar no auditório, encontrei apenas um companheiro. Sim, eu havia chegado antes da própria produção das palestras. O prevenido amigo da fileira da frente mal entendeu minha dificuldade de ficar acordado naquela espera que parecia interminável. Aos poucos as outras pessoas iam chegando, acomodando-se nos assentos e comentando sobre as suas expectativas. Para mim, cada pessoa que chegava era como um eficiente despertador digital. Fui sendo acordado assim, com requintes de crueldade, até desistir, definitivamente, de cochilar.

Começa o evento. O apresentador agradece ao público pela presença, cumpre as cerimônias e evoca o primeiro palestrante. Seria exatamente Luiz Mendes o responsável por abrir o evento e manter-me acordado. O assunto foi acontecendo, como uma chuva de fim de tarde em um domingo. Rapidamente, compreendi a razão pela qual aquele homem era conhecido como o Comentarista da Palavra Fácil: a maneira como ele passava o universo de suas experiências era leve, divertido. Não havia mais sono. Apenas uma compenetração de quem tem a convicção de que está vivendo um momento único.

O tempo passou e o bate-papo, infelizmente, acabou. Sempre solicito, Luiz Mendes aguardou fora do auditório àqueles que desejavam tirar uma foto e guardar para posteridade esse momento inesquecível. E lá fui eu, sem câmera, mas com uma caneta, um papel e uma ideia na cabeça. Durante sua participação, ele declamou sua adoração pelo futebol de Garrincha e Zizinho. Foi nesse instante que eu percebi que poderia aproveitar a oportunidade para tirar uma dúvida.

Sempre fui contra essa idolatria maluca que culmina com a denominação de alguém de Rei. Para mim, a Humanidade já exorcizou a monarquia e todos seus poderes absolutos desde a Queda da Bastilha. Pelé era um grande nome do futebol, um personagem único, mas que nada havia feito pelo povo brasileiro para ter tal título de nobreza. Questionar a hegemonia de Pelé no Brasil é uma heresia tão grande quanto cuspir em uma imagem santa ou acreditar que existe alguma alternativa para o sistema econômico e social em que vivemos. Mas seria mesmo Pelé isso tudo?

Após uma sessão inesgotável de fotos, chega minha vez. Sob a desculpa de querer um autógrafo, me aproximei. Já após a assinatura, eu, um tanto exitante, perguntei se Zizinho era melhor que o Pelé. Ele me olhou desconfiado. Contudo, com a mesma calma e reverência que impostava sua voz nas ondas do rádio ele me disse: "Não". De súbito, achei que ele, como toda a nação brasileira, estivesse me reprimindo pela pergunta. Aí, veio a continuação: "Na verdade, cinco jogadores foram os melhores. Domingos da Guia, Leônidas da Silva, Zizinho, Pelé e Garrincha. Todos eles tiveram o mesmo nível. Foram fantásticos. Impossível eleger um"

Pronto. Aí estava o álibi final, tudo o que eu mais precisava para ter certeza que minha opinião não era uma mera iconoclastia vã. Se Luiz Mendes, que havia visto esses cinco fantásticos jogarem bola não era capaz de saber quem era o melhor, como, em todos quatro cantos desse país, o nome de Pelé é proclamado Monarca de um esporte com tantos virtuosos?

Desde então aquela frase ecoa na minha cabeça. Com a simplicidade de quem conversa no café-da-manhã, aquele senhor foi capaz de mudar minha maneira de ver o mundo. Percebi que não se tratava de um olhar adolescente e anarquista da realidade, simplesmente uma tentativa de reinterpretar verdades questionáveis. A partir daquela frase, tento ler por trás das linhas, procurar outros pontos de vista, desconstruir imagens sacras. Uma tarefa inglória, porém necessária. Provavelmente, ele nunca soube da importância daqueles trinta segundos de conversa. Obrigado, Luiz Mendes.

Por Helcio Herbert Neto.

Nenhum comentário:

Postar um comentário