domingo, 2 de outubro de 2011

Primavera dos Povos


Regina repousou a xícara de café puro desequilibradamente sobre a mesa da cozinha, enquanto passava o olho pelo jornal à procura de novas notícias. Não ia trabalhar. O banco havia entrado em greve e ela rezava em si por um reajuste que cobrisse pelo menos a inflação iminente. Leu o que não agradava - “os seis maiores bancos que operam no Brasil lucraram R$ 25,9 bilhões no primeiro semestre de 2011” – e desceu para checar a correspondência.

No térreo, só o radinho de pilha do porteiro ligado e o pequeno Maicon brincando de ajudar o pai no serviço quebravam o clima lúgubre daquela manhã de terça-feira. O menino correu, sorridente, e denunciou suas ‘férias’. Severino girou lentamente a respeitável barriga para corrigir o filho a tempo.
- É, dona Regina, os professô num tão querendo mais trabalhá por merreca não – disse abafado pelo bigode grisalho.

Nada de cartas na caixa. Foi quando ela se lembrou de ter visto algo estranho sobre Correios no periódico, e sentiu uma espécie de compaixão oficial por aquela gente parva e por si mesma.

Subiu no elevador com Sérgio, seu vizinho de baixo, e, em vinte e cinco segundos, não falou sobre o tempo que tinha virado, mas descobriu que o mestre de obras também não ia trabalhar e o porquê lhe soou familiar. Os anônimos que ajudavam a erguer o monumento de R$860 milhões para a festa em 2014 não recebiam os R$160 de cesta básica que queriam. Não tinham plano de saúde e ganhavam comida estragada na hora almoço.

À noite, logo após o jantar, Regina deitou junto ao marido e ele achou estranho. Consumida por um medo visceral e inexplicável, tratou de procurar conforto no ombro sempre firme do homem. Não achou ruim ver esporte na tv àquela altura. Achou que, se tudo estava saindo dos trilhos, se algo estava balançando, queria ver os robóticos atletas milionários promovendo algum espetáculo.

Não mais. No canal internacional, a poderosa liga de basquete americano estava estagnada. Ele achou estranho, mudou. Gostava das raquetes também, mas os tenistas não apareceram para exibir seus fortes patrocínios. Não toleravam mais as jornadas desumanas de jogos e as lesões seguidas e irreversíveis. O modelo esportivo ruíra.

Um olhou para o outro. Ele sabia que a Justiça Federal logo estaria na mesma e então poderia passar mais tempo em casa. Ela suspirava, aliviada, por fazer parte do mesmo mundo cretino que as estrelas internacionais. Entre os dois, harmonia. E ali, nos lábios do proletário, um beijinho de anarquia.


Por Beto Passeri.

Um comentário:

  1. Belo texto Beto. Muito bem construídi, curto e com muita informação concisa. Aquele teu outro blog você desativou?

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